sábado, 22 de outubro de 2016

Estômago (2008)


“Estômago” é uma fábula nada infantil sobre o poder, o sexo e a culinária. É co-produzido por Brasil-Itália, e é o primeiro, e já magnífico, longa-metragem do diretor Marco Jorge.

O filme inicia com um monólogo do protagonista sobre a história do queijo gorgonzola. Pouco depois, vemos o protagonista aprendendo a fazer pastel. Aliás, as imagens desta preparação serviram de suporte para os créditos iniciais do filme. E a partir daí os pratos apresentados e descritos, no interior da história, são muitos: xinxim de galinha, macarrão alho e óleo, macarrão à PUTAnesca, risoto à milanesa, peixe ao forno, carpaccio, leitão ao forno, e até uma farofa de formiga (esse garante uma boa risada). Prato importante no contexto da história é uma sobremesa, Anita e Garibaldi, feita de gorgonzola e goiabada, prato que será o pivô da tragédia que se abate sobre o protagonista. Até ai só falei das comidas do filme, a final, o homem é o único animal que cozinha. Isso já bastaria para justificar o tema de um filme como "Estômago". Mas ele é muiiiito mais do que isso.

"Estômago", como o próprio título já sugere, reflete bem a visceralidade da história, a qual conta a ascensão e queda de Raimundo Nonato (interpretado brutalmente bem por João Miguel, que conseguiu equilibrar a personagem entre o ingênuo e o esperto, com uma caracterização cativante, sem nunca cair nos clichês de representação do nordestino simpático) um cozinheiro com dotes muito especiais. Ele é um dos muitos migrantes que partem em direção à cidade grande na esperança de conseguir uma vida que lhe permita, no mesmo dia, almoçar e jantar. Primeiramente, ao chegar lá, sem um sem centavo no bolso e morrendo de fome, ele é praticamente encarcerado pelo dono de um boteco, onde trabalha em troca de comida e moradia, não tendo sequer direito a salário; mais tarde, vai trabalhar - com bem mais dignidade, é verdade - para Giovanni (Carlo Briani) , o dono de um restaurante italiano, cujo caráter brincalhão não esconde, no entanto, o preconceito que o faz referir-se a Nonato às vezes como paraíba, às vezes como cearense, muito embora Nonato afirme, várias vezes, não vir nem de um nem de outro desses lugares. Nonato começa então a descoberta da cozinha italiana, das receitas, dos sabores e, como não poderia deixar de ser, do vinho. A vida dele muda, inicia-se sua afirmação no mundo: uma casa, roupas, relacionamentos sociais e, sobretudo, o amor de uma mulher, a prostituta de apetite insaciável Íria (Fabiula Nascimento), com a qual estabelece uma ancestral relação de sexo em troca de comida.

O talento de Nonato na cozinha também é logo descoberto pelos seus companheiros de cela. Para eles e para seu violento chefe, Bujiú, a chegada do novo companheiro na cela é a salvação pois logo o miserável rancho da cadeia se transforma em pratos exóticos. Nonato, à sua revelia, passa então a ser conhecido como Alecrim, e com esse apelido começa também a sua escalada ao poder.

Durante todo o filme, as duas tramas diferentes, a de Nonato chegando na cidade e a dele na penitenciária, seguem paralelamente. O motivo da prisão é desconhecido e só ganha forma de imagens nas últimas cenas, quando as duas tramas precipitassem juntas em um gran-finale, e se completa o aprendizado de Nonato. Pois, apesar de sua ingenuidade e simplicidade, rapidamente aprende as regras da sociedade dos que devoram ou são devorados. Regras que ele usa a seu favor, porque mesmo os cozinheiros têm direito a comer sua parte - e eles sabem, mais do que ninguém, qual é a parte melhor.

Tiveram três coisas que achei genial nesse filme:

1ª Ele acompanha a trajetória do protagonista em seu aprendizado do sistema, de uma maneira um tanto quanto cruel. Ninguém nota, mas "Estômago" começa na boca do protagonista e acaba em seu traseiro. Assim como o sistema digestivo, que transforma tudo, todas as delícias, em excrementos. Assim, o percurso de Nonato pela sociedade refaz o percurso da comida em nosso corpo.

2ª Ele trabalha com certos estereótipos e brinca com as expectativas criadas a partir dessas caricaturas. "Estômago" foge dos cardápios clichês vigentes sobre os ambientes e os personagens envolvidos. Assim como a comida mostrada no filme é apetitosa mesmo sendo feita em condições higiênicas tremendas, os personagens do filme também tem qualidades e defeitos evidentes. E gostamos deles apesar disso, ou justamente por isso. "Estômago" é politicamente incorreto, um filme que convida o espectador a rir de tudo: do nordestino, do bandido, da prostituta, do sulista dono do boteco, do italiano metido a professor, da exploração dos mais fracos pelos um pouco menos fracos, das frases feitas da gastronomia e da enologia, dos preconceitos que intermedeiam a relação entre as pessoas, e sobretudo, convida o espectador a rir de si mesmo. Acredito que esse tipo de riso, é a forma mais potente de criticar e iluminar a condição humana.

3ª A trilha sonora, que nos faz sentir o sabor de cada cena...


Um fato muito importante a ser destacado sobre "Estômago" é que, apesar de sua aparência fabulosa, se trata de um filme bastante realista, especialmente no que se refere à vida dos protagonistas. A história é completamente inventada, mas poderia ter acontecido.

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