“Estômago”
é uma fábula nada infantil sobre o poder, o sexo e a culinária. É
co-produzido por Brasil-Itália, e é o primeiro, e já magnífico,
longa-metragem do diretor Marco Jorge.
O filme inicia
com um monólogo do protagonista sobre a história do queijo gorgonzola.
Pouco depois, vemos o protagonista aprendendo a fazer pastel. Aliás, as
imagens desta preparação serviram de suporte para os créditos iniciais
do filme. E a partir daí os pratos apresentados e descritos, no interior
da história, são muitos: xinxim de galinha, macarrão alho e óleo,
macarrão à PUTAnesca, risoto à milanesa, peixe ao forno, carpaccio,
leitão ao forno, e até uma farofa de formiga (esse garante uma boa
risada). Prato importante no contexto da história é uma sobremesa, Anita
e Garibaldi, feita de gorgonzola e goiabada, prato que será o pivô da
tragédia que se abate sobre o protagonista. Até ai só falei das comidas
do filme, a final, o homem é o único animal que cozinha. Isso já
bastaria para justificar o tema de um filme como "Estômago". Mas ele é
muiiiito mais do que isso.
"Estômago", como o próprio
título já sugere, reflete bem a visceralidade da história, a qual conta a
ascensão e queda de Raimundo Nonato (interpretado brutalmente bem por
João Miguel, que conseguiu equilibrar a personagem entre o ingênuo e o
esperto, com uma caracterização cativante, sem nunca cair nos clichês de
representação do nordestino simpático) um cozinheiro com dotes muito
especiais. Ele é um dos muitos migrantes que partem em direção à cidade
grande na esperança de conseguir uma vida que lhe permita, no mesmo dia,
almoçar e jantar. Primeiramente, ao chegar lá, sem um sem centavo no
bolso e morrendo de fome, ele é praticamente encarcerado pelo dono de um
boteco, onde trabalha em troca de comida e moradia, não tendo sequer
direito a salário; mais tarde, vai trabalhar - com bem mais dignidade, é
verdade - para Giovanni (Carlo Briani) , o dono de um restaurante
italiano, cujo caráter brincalhão não esconde, no entanto, o preconceito
que o faz referir-se a Nonato às vezes como paraíba, às vezes como
cearense, muito embora Nonato afirme, várias vezes, não vir nem de um
nem de outro desses lugares. Nonato começa então a descoberta da
cozinha italiana, das receitas, dos sabores e, como não poderia deixar
de ser, do vinho. A vida dele muda, inicia-se sua afirmação no mundo:
uma casa, roupas, relacionamentos sociais e, sobretudo, o amor de uma
mulher, a prostituta de apetite insaciável Íria (Fabiula Nascimento),
com a qual estabelece uma ancestral relação de sexo em troca de comida.
O
talento de Nonato na cozinha também é logo descoberto pelos seus
companheiros de cela. Para eles e para seu violento chefe, Bujiú, a
chegada do novo companheiro na cela é a salvação pois logo o miserável
rancho da cadeia se transforma em pratos exóticos. Nonato, à sua
revelia, passa então a ser conhecido como Alecrim, e com esse apelido
começa também a sua escalada ao poder.
Durante todo o
filme, as duas tramas diferentes, a de Nonato chegando na cidade e a
dele na penitenciária, seguem paralelamente. O motivo da prisão é
desconhecido e só ganha forma de imagens nas últimas cenas, quando as
duas tramas precipitassem juntas em um gran-finale, e se completa o
aprendizado de Nonato. Pois, apesar de sua ingenuidade e simplicidade,
rapidamente aprende as regras da sociedade dos que devoram ou são
devorados. Regras que ele usa a seu favor, porque mesmo os cozinheiros
têm direito a comer sua parte - e eles sabem, mais do que ninguém, qual é
a parte melhor.
Tiveram três coisas que achei genial nesse filme:
1ª
Ele acompanha a trajetória do protagonista em seu aprendizado do
sistema, de uma maneira um tanto quanto cruel. Ninguém nota, mas
"Estômago" começa na boca do protagonista e acaba em seu traseiro. Assim
como o sistema digestivo, que transforma tudo, todas as delícias, em
excrementos. Assim, o percurso de Nonato pela sociedade refaz o percurso
da comida em nosso corpo.
2ª Ele trabalha com certos
estereótipos e brinca com as expectativas criadas a partir dessas
caricaturas. "Estômago" foge dos cardápios clichês vigentes sobre os
ambientes e os personagens envolvidos. Assim como a comida mostrada no
filme é apetitosa mesmo sendo feita em condições higiênicas tremendas,
os personagens do filme também tem qualidades e defeitos evidentes. E
gostamos deles apesar disso, ou justamente por isso. "Estômago" é
politicamente incorreto, um filme que convida o espectador a rir de
tudo: do nordestino, do bandido, da prostituta, do sulista dono do
boteco, do italiano metido a professor, da exploração dos mais fracos
pelos um pouco menos fracos, das frases feitas da gastronomia e da
enologia, dos preconceitos que intermedeiam a relação entre as pessoas, e
sobretudo, convida o espectador a rir de si mesmo. Acredito que esse
tipo de riso, é a forma mais potente de criticar e iluminar a condição
humana.
3ª A trilha sonora, que nos faz sentir o sabor de cada cena...
Um
fato muito importante a ser destacado sobre "Estômago" é que, apesar de
sua aparência fabulosa, se trata de um filme bastante realista,
especialmente no que se refere à vida dos protagonistas. A história é
completamente inventada, mas poderia ter acontecido.